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sábado, 8 de maio de 2010

MÃE

DONA LUIZA BEZERRA.
Com ela eu aprendi o essencial para a vida

Falar sobre minha mãe é paradoxalmente fácil e difícil. Fácil porque são muitos os fatos que eu gostaria de relatar. Difícil porque devo escolher o que relatar.

De minha inesquecível, por que agradável, infância, eu guardo a imagem de uma mulher ativa, muito criativa e dinâmica. A figura de uma mãe enérgica, mas também carinhosa com os filhos, ao lado de um pai um pouco fechado, mais exigente e rígido do que ela.

Desde cedo eu senti a vida pelo lado duro do trabalho. A situação econômica de meus pais era difícil: pequenos agricultores na Caieira e no Riacho Seco; e depois pequenos comerciantes em Crateús, antes de fugirem, literalmente, da seca de 1958, do Ceará para Goiânia.

Meu pai, Miguel Fernandes de Oliveira, era tão econômico que nós catávamos com ele o arroz e ele se dava ao trabalho de descascar uma a uma as escolhas (grãos com casca), fossem, cem, duzentas, trezentas ou mais. Eu nunca entendi a sua atitude como miserabilidade ou coisa parecida, mas como senso de economia e parcimônia .

A mamãe até hoje, também junta toda e qualquer coisa que possa ser útil amanhã: um prego, um pedaço de arame ou de cordão, um retalho, um saquinho de papel ou de plástico, uma rolha...

Nessa realidade difícil, minha mãe fazia de tudo para completar o orçamento doméstico: cocadas, bolos, doces, tapiocas... e costurava roupas masculinas para a Dona Senhora do Sr. José do Vale, que ainda hoje lembra com estima, de sua costureira especial.

Eu, com oito anos de idade, ia ao interior comprar ovos e galinhas mais baratos, vendia frutas nas ruas especialmente maracujá. O doce de ovos que ela fazia era muito apreciado, eu sempre vendia todo rapidamente. Tudo isso acontecia por iniciativa de minha mãe.

Uma lembrança inesquecível foi a de quando ela me ensinou o ABC. Ainda hoje eu me lembro do meu incomensurável interesse em aprender a ler. A minha ansiedade era tanta, que uma vez, eu mostrei quatro nomes muito grandes, que estavam na contra capa do livro perguntei a ela:

- “Mamãe, quando a gente chegar no fim do livro eu saberei ler esses enormes nomes?”

- “Vai meu filho, com certeza.”

Eu me entusiasmei para aprender a ler. E realmente no fim do livro eu fui capaz de ler os enormes nomes: “Marca Registrada” e “Edições Melhoramentos”. Para mim, foi fantástico! E desde o dia em que fui capaz de ler aquelas quatro palavras, tornei-me um leitor voraz.

Mais ou menos em 1953 ou 1954 um vizinho nosso, de nome Clodoaldo, fez um cacimbão e a mamãe teve a iniciativa de pedir a ele as pedras e nós, entre 19 e 22 horas, quebrávamos as pedras e fazíamos concreto, papai, mamãe, o Gonzaga, o Antônio e eu. A Maria José, muito pequena ficava olhando até adormecer e ser levada para o berço. Eu passei a vender os doces e a oferecer concreto; onde eu encontrava uma construção, perguntava se eles queriam comprar concreto. O concreto era vendido medido em latas de querosene Jacaré.

Após uma missão dos frades franciscanos em Crateús em 1954, eu pedi à minha mãe para ser frade. Através de umas primas dela Julia e Julieta Bomfim, eu consegui uma vaga no Seminário de Messejana onde ingressei em 20 de janeiro de 1957. Elas foram sempre muito atenciosas conosco e sem o interesse delas dificilmente eu teria vindo para o Seminário Seráfico de Messejana. Deixo aqui os meus sinceros agradecimentos a Júlia e Julieta Bomfim.

Uma característica do sertanejo, que via na casa de meus avós e de minha mãe, era a abundância, mesmo na pobreza e na simplicidade. No final do ano de 1957 a mamãe levou para mim no Seminário em Messejana, um enorme vidro de doce de caju feito por ela, com mais de 40 centímetros e bastante largo, para admiração dos 80 seminaristas, que tiveram sobremesa para dois ou três dias.

Em abril de 1958, a mamãe visitou-me em Messejana e disse que ela e o papai tinham resolvido se mudar para Goiânia, em Goiás com os filhos e me perguntou se eu iria com eles. Eu falei que estava gostando do Seminário e que preferia ficar em Messejana. Eles foram e eu recebia e dava noticias ao menos duas vezes por ano. Em 1963, antes de ir para o noviciado, eu fui à casa de meus pais. Depois voltei lá em 1966, o Paulo Afonso tinha dois ou três anos de idade e eu não o conhecia. A mamãe me apresentou a ele dizendo:

- Paulo Afonso, esse é o Frei Hermínio, seu irmão, ao que ele respondeu:

- Meu irmão, como? Eu nunca vi esse cara!

A partir de 1969 eu passei a fazer Teologia em Salvador na Bahia e pude ir com mais freqüência a Brasília e fazer amizade com meus próprios irmãos, especialmente os mais novos.

Em 13 de janeiro de 1973 eu me ordenei na Igreja do Coração de Jesus, em Fortaleza, com a presença de meus pais. Fomos até à Vila Coutinho (hoje Quiterianópolis), onde celebrei a minha primeira missa.

A mamãe sempre foi uma pessoa aberta e dentro do possível atualizada. Após a minha ordenação as amigas, Fernanda Matos Brito e Irmã Marciana, convidaram a mim e a meus pais para um almoço numa casa de praia. A irmã Marciana, de mentalidade avançada, não usava hábito e me pediu: “não diga a sua mãe que eu sou freira, para ela não se escandalizar, pois toda mãe de padre é cafona”. Foi essa a primeira coisa que eu disse à mamãe ao apresentá-la e a mamãe elogiou a irmã por estar atualizada. A irmã Marciana me disse: “foi a primeira mãe de padre que eu conheci que não é conservadora”.

Meu pai faleceu no Natal de 1978, deixando a família consternada, mas como bons cristãos, conseguimos superar a imensa tristeza pela pesada perca que “desabou” sobre todos nós, e tocar a vida para frente.

A partir de 1983 a mamãe passou a morar no exterior: Alemanha, Bélgica, Inglaterra, México e Estados Unidos, sempre acompanhando filhos o Zacharias, a Lúcia de Fátima, o Paulo Afonso, o João Bosco e o Luis Bezerra.

Em julho de 1983, eu estudava em Lovaina, na Bélgica e a mamãe morava em Bonn com o Zacharias. Ele me pediu que eu a acompanhasse à Terra Santa. Comprou as passagens lá mesmo em Lovaina. A vendedora Martine, uma belga flamenga, falava um pouco de português, estivera inclusive morando alguns meses em Canoa Quebrada, no tempo em que lá era uma praia de nudistas, vendo o “de” em nossos nomes e associando ao “Von” dos nobres europeus, ela perguntou:

- Vocês são príncipes?

- Sim, somos príncipes do sertão!

Respondeu incontinente a mamãe. Era o orgulho sadio que ela tem de ser “sertaneja” onde quer que esteja.

Nessa peregrinação foi que eu me dei conta de como ela tinha um grande conhecimento da “História Sagrada”, pois ela queria visitar tudo: Betfagé, Belém, Cafarnaum, Cana de Galiléia, Cesaréia, Emaús, Jerusalém, Nazaré, Naim, Samaria, Siquém...

Em Caná da Galiléia ela quis visitar a casa onde Jesus fez o seu primeiro milagre, transformando água em vinho. Eu disse:

- Mamãe, esta casa não existe mais!

- Mas como é que se derruba uma casa tão importante dessas?

Curiosamente, na minha última peregrinação à Terra Santa em julho de 2000, o nosso guia, Frei Pascoal Rota, nos levou a um local onde pesquisas arqueológicas, estão indicando ser o local da residência onde Jesus fez o seu primeiro milagre, embora não houvesse ainda uma confirmação definitiva.

Nessas suas idas e vindas ao exterior, muitas vezes viajando sozinha, foram muitos os fatos pitorescos: Uma vez no aeroporto de Frankfurt, a Lufthansa colocou-a numa sala VIP de espera, por ser ela mãe de um funcionário (o Antônio trabalhou muitos anos na Lufthansa). Na mesma sala já estava a Raquel de Queirós, A mamãe cumprimentou-a, “como vai Raquel de Queiroz?” A Raquel ficou muito admirada de ser reconhecida naquelas paragens. Começaram a conversar e a Raquel disse que voltava da Feira Internacional do Livro em Frankfurt e perguntou se a mamãe era fazendeira, ela respondeu que não e que estava no exterior visitando filhos. Ela começou a falar de sua fazenda “Não me deixes” em Quixadá, e disse que os empregados da fazenda se tornaram protestantes e agora não fumavam, não bebiam, eram fiéis às esposas... A mamãe observou: É curioso Raquel, se poderia perguntar a eles, quando foi que a Igreja católica recomendou aos seus fiéis, fumar, beber ou serem infieis às esposas... E a Raquel, achou muiito interessante a observação dela.

A última vez que eu vim com a mamãe da Alemanha, nós pegamos um ônibus no terminal do aeroporto de Frankfurt que nos levou ao pé da escada do avião. O ônibus fez um percurso um tanto sinuoso e um pouco demorado. Como sempre estávamos com muitos pacotes, entramos por último no ônibus e o motorista saiu de sua cadeira para pegar os pacotes da mamãe. Perto do fim do trajeto a mãe disse: “Como diz o Chico Araújo (1), parece que esse avião foi parar em brucutas!” O motorista, um típico alemão, deu uma bela gargalhada. Até hoje eu me pergunto o que ele entendeu ou o que seria “brucutas” em alemão.

É muito interessante como uma pessoa de pouca instrução, um ou dois cursos de poucos meses, com aqueles professores do sertão, desenvolveu um fino gosto pela arte e um certo conhecimento neste setor. É bem verdade que ela teve uma aprendizagem prática, visitando importantes museus: o Prado em Madri, o Museu Real em Bruxelas, o museu Britânico, a Tate e a National Gallery, em Londres, O Museu Vitória e Alberto também em Londres, a Casa de Rubens em Antuérpia, o Museu do Vaticano, o magnífico Museu de Antropologia do México... e outros.

Na viagem que fizemos pela Europa entre Limogenes e Bordeaux, passamos na pequena cidade de Lascaux, e a mamãe vendo uma enorme placa na entrada disse: que cidade de nome esquisito, Lascaux e o Zacha observou: não mamãe não é Lascaux, é “Lascou”, mesmo.

Com as peças curiosas que ela adquiriu pechinchando (arte em que é mestra), no Marché aux Puces (Mercado das Pulgas) de Bruxelas, na Feiras de Colônia, na agradável feira livre de Porto Belo em Londres, em Israel, em Portugal, na Espanha e no México, ela já montou interessantes bazares em Brasília. E não só do exterior, da fazenda Confiança, da madrinha Evina, em Santa Teresa (Tauá) em 2002 ela levou cerca de 15 cactos, conhecidos como “coroa de frade”, para Brasília, todas foram colocadas em jarros e foram disputadas.

Apesar dos controles, ela trouxe de Israel não apenas água do rio Jordão, mas sementes de tâmaras que plantadas na casa de Dona Rosa Morais, em Crateús, produzem tâmaras até hoje. Para o México, ela levou castanhas de caju selecionadas, que foram plantadas num Seminário em Apatzingan, no belo estado de Michoacan. Ela conheceu o Diretor deste Seminário em Bonn, na Alemanha.

(1) Esposo da tia Antonina, irmã mais nova da mamãe.

A mamãe também tem uma franqueza, que às vezes pode até parecer dura demais, diz à pessoa aquilo que ela quer dizer, embora algumas pessoas possam se sentir chateadas. Eu como a conheço entendo bem. Eis um exemplo: Uma vez estávamos na Suíça com alguns brasileiros e uma senhora do grupo começou a perguntar sobre os filhos dela, ela foi falando e disse:

- Esse é o meu terceiro filho, Frei Hermínio frade capuchinho... a senhora disse, ah, ele é padre, que bom, com certeza este é o filho de quem a senhora mais gosta!

Ao que ela respondeu:

- É não, o filho que eu mais gosto é o Zacharias, porque dos 16, ele foi o único que mamou três anos no meu peito.

Em Bonn, no ano 2002, eu encontrei o Falko (Falcão), um amigo alemão, funcionário da Cruz Vermelha, que trabalhou em Angola, e ele perguntou por ela e eu disse: Ela está bem, mas está mais velha e mais fraca, tem que ir mais ao médico... Ele retrucou: velha e fraca, mas eu tenho certeza de que se ela chegar aqui ainda vem arrastando seis malas, como antes.

A minha mãe tem um complexo, não digo isso como psicólogo, mas apenas como observador. Ela tem um complexo de mãe de todos os frades do mundo. Onde ela anda procura frades: Alemanha, Bélgica, Espanha, Inglaterra, Israel, México, Portugal, Suíça... às vezes esses filhos não a reconhecem. Uma vez lhe disseram que aquela não era hora de procurar frade, pois era hora do almoço, mas ela compreendeu. É bom dizer que esse fato não se passou no Brasil e nem na Europa.

Eu já tive grandes mestres, em Salvador da Bahia, em Lovaina, na Bélgica, em Friburgo na Suíça, mas assim como o Gabriel Garcia Márquez diz que tudo o que ele escreveu em “Cem anos de Solidão” sobre sua Macondo, foram histórias contadas por sua avó, eu posso afirmar: o essencial do que eu aprendi na vida não foi com os grandes mestres na América e na Europa, mas foi com a minha mãe, desde quando ela me ensinou o ABC. Com ela eu aprendi o essencial para a vida. Foi por seus ensinamentos e seu exemplo de vida, que eu pude vencer tantas barreiras e chegar aonde cheguei.

Frei Hermínio Bezerra de Oliveira
(Do livro: Luiza Bezerra de Oliveira: 80 anos dedicados ao próximo, 2004)

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