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quarta-feira, 13 de junho de 2012

Bufão: reino da loucura organizada



por Cláudia Sachs *

Na Idade Média, Igreja Católica amaldiçoava o riso por considerá-lo de origem essencialmente diabólica. Foram emprestados aos diabos os traços cômicos, e, dessa forma, os bufões encantavam o público e rompiam com a monotonia e o tom solene que havia nos espetáculos religiosos. O teatro popular medieval das feiras e praças foi excomungado pelas autoridades religiosas e até mesmo por decisões de conselhos civis.
Pouco a pouco o profano começa a sobrepor-se ao sagrado, contribuindo assim para a formação de um novo espetáculo. Nas figuras dos diabos, reaparece o sorriso satírico os malvados, os pecadores, os tentadores, os heréticos, revestindo-se outra vez, ainda que simbolicamente, das máscaras do Mimo e das Atellanas. Ambas são figuras satíricas incríveis, com suas expressões faciais e suas insolências, que conseguiam arrebatar grandes públicos nas praças, nos burgos lotados pela multidão e nas cortes principescas.
Segundo Serge Martin (1984), o termo "Bufão" veio da palavra grega que designava o Louco. Desde a Antiguidade até o séc. XVII, os ricos e poderosos tinham sempre perto deles os Bufões. Na Pérsia, Egito, e mais tarde na Grécia e em Roma, esses pobres miseráveis, párias disformes, vinham fazer rir os poderosos, anunciavam-lhes o futuro ou as vontades dos deuses e eram amiúde convidados a apresentarem-se em festas nobres.
O Bufão é representado na maioria das dramaturgias cômicas. É um cômico grosseiro, indelicado, obsceno, grotesco. Vertigem do cômico absoluto, é o princípio orgiástico da vitalidade transbordante, da palavra inesgotável, da desforra do corpo sobre o espírito, da derrisão carnavalesca do pequeno ante o poder dos grandes, da cultura popular perante a cultura erudita. O bufão é o louco, o marginal. Esse estatuto de exterioridade o autoriza a comentar os acontecimentos impunemente, como uma paródia do coro da tragédia. Sua fala, a fala do louco, é proibida, porém ouvida.
O poder desconstrutor do bufão atrai os poderosos e os sábios: o rei tem seu bobo; o jovem apaixonado, seu criado; o senhor nobre da comédia espanhola, seu gracioso; Dom Quixote, seu Sancho Pança; Fausto, seu Mefisto; Wladimir, seu Estragon. O bufão destoa onde quer que vá: na corte, é plebeu; entre os doutos, dissoluto; em meio a soldados, poltrão; entre estetas, glutão; entre preciosos, grosseiro… e lá vai ele, seguindo despreocupadamente seu caminho. Ele é o princípio vital e corporal por excelência, um animal que se recusa a pagar pela coletividade e que nunca tenta fazer-se passar por outro. Ele é o revelador dos outros e nunca fala em seu próprio nome. O bufão guarda, na verdade, a lembrança de suas origens infantis e bestiais. É um ser transcendental, visionário e lúcido, que se utiliza do deboche e da paródia para transmitir sua mensagem.
A lascívia é uma das suas características, assim como a mistura entre linguagem literária e gíria popular, de valores rítmicos de representação com abundância de gestos típicos e movimentos quase dançados. De uma maneira geral, os atores que jogam esse estilo exibem um modo de atuar acrobático, gestos que remetem a uma técnica de corpo não-cotidiana. Especialmente no teatro popular e na comédia, há outros tipos-personagens e máscaras que encenam a liberdade sexual, a obscenidade, o prazer, e que, embora não caracterizados formalmente como bufões, têm sua postura ideológica uma atitude esca, onde as obscenidades vêm acompanhadas de zombarias a determinados segmentos da sociedade ou cidadãos. Marcado pela licensiosidade, o bufão é genuinamente amoral, libidinoso ao extremo, manifestando as emoções com exagero. Suas necessidades fisiológicas básicas (inclusive as sexuais) podem ser satisfeitas na presença do público e sem o menor pudor, até mesmo de forma provocadora. Sua liberdade não se limita ao obsceno: é uma estratégia para denunciar o absurdo das relações humanas.