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por Cláudia Sachs *
Na Idade Média, Igreja Católica
amaldiçoava o riso por considerá-lo de origem essencialmente diabólica. Foram
emprestados aos diabos os traços cômicos, e, dessa forma, os bufões encantavam
o público e rompiam com a monotonia e o tom solene que havia nos espetáculos
religiosos. O teatro popular medieval das feiras e praças foi excomungado pelas
autoridades religiosas e até mesmo por decisões de conselhos civis.
Pouco a pouco o profano começa a sobrepor-se ao
sagrado, contribuindo assim para a formação de um novo espetáculo. Nas figuras
dos diabos, reaparece o sorriso satírico os malvados, os pecadores, os
tentadores, os heréticos, revestindo-se outra vez, ainda que simbolicamente,
das máscaras do Mimo e das Atellanas. Ambas são figuras satíricas incríveis,
com suas expressões faciais e suas insolências, que conseguiam arrebatar
grandes públicos nas praças, nos burgos lotados pela multidão e nas cortes
principescas.
Segundo Serge Martin (1984), o termo "Bufão"
veio da palavra grega que designava o Louco. Desde a Antiguidade até o séc.
XVII, os ricos e poderosos tinham sempre perto deles os Bufões. Na Pérsia,
Egito, e mais tarde na Grécia e em Roma, esses pobres miseráveis, párias
disformes, vinham fazer rir os poderosos, anunciavam-lhes o futuro ou as
vontades dos deuses e eram amiúde convidados a apresentarem-se em festas
nobres.
O Bufão é representado na maioria das dramaturgias
cômicas. É um cômico grosseiro, indelicado, obsceno, grotesco. Vertigem do
cômico absoluto, é o princípio orgiástico da vitalidade transbordante, da palavra
inesgotável, da desforra do corpo sobre o espírito, da derrisão carnavalesca do
pequeno ante o poder dos grandes, da cultura popular perante a cultura erudita.
O bufão é o louco, o marginal. Esse estatuto de exterioridade o autoriza a
comentar os acontecimentos impunemente, como uma paródia do coro da tragédia.
Sua fala, a fala do louco, é proibida, porém ouvida.
O poder desconstrutor do bufão atrai os poderosos e os
sábios: o rei tem seu bobo; o jovem apaixonado, seu criado; o senhor nobre da
comédia espanhola, seu gracioso; Dom Quixote, seu Sancho Pança; Fausto, seu
Mefisto; Wladimir, seu Estragon. O bufão destoa onde quer que vá: na corte, é
plebeu; entre os doutos, dissoluto; em meio a soldados, poltrão; entre estetas,
glutão; entre preciosos, grosseiro… e lá vai ele, seguindo despreocupadamente
seu caminho. Ele é o princípio vital e corporal por excelência, um animal que
se recusa a pagar pela coletividade e que nunca tenta fazer-se passar por
outro. Ele é o revelador dos outros e nunca fala em seu próprio nome. O bufão
guarda, na verdade, a lembrança de suas origens infantis e bestiais. É um ser
transcendental, visionário e lúcido, que se utiliza do deboche e da paródia
para transmitir sua mensagem.
A lascívia é uma das suas características, assim como a
mistura entre linguagem literária e gíria popular, de valores rítmicos de
representação com abundância de gestos típicos e movimentos quase dançados. De
uma maneira geral, os atores que jogam esse estilo exibem um modo de atuar
acrobático, gestos que remetem a uma técnica de corpo não-cotidiana.
Especialmente no teatro popular e na comédia, há outros tipos-personagens e
máscaras que encenam a liberdade sexual, a obscenidade, o prazer, e que, embora
não caracterizados formalmente como bufões, têm sua postura ideológica uma
atitude esca, onde as obscenidades vêm acompanhadas de zombarias a determinados
segmentos da sociedade ou cidadãos. Marcado pela licensiosidade, o bufão é
genuinamente amoral, libidinoso ao extremo, manifestando as emoções com exagero.
Suas necessidades fisiológicas básicas (inclusive as sexuais) podem ser
satisfeitas na presença do público e sem o menor pudor, até mesmo de forma
provocadora. Sua liberdade não se limita ao obsceno: é uma estratégia para
denunciar o absurdo das relações humanas.